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quarta-feira, 29 de julho de 2020

ACREDITAR EM DEUS É DIFERENTE DE TER RELIGIÃO

Autor de "Zelota – A vida e a época de Jesus de Nazaré" e "Deus – Uma história humana", o cientista da religião Reza Aslan defende o panteísmo como uma “espiritualidade para um mundo novo e globalizado”
1. Em seu livro "Deus – Uma história humana", o senhor argumenta que desumanizar Deus, despojá-lo de características humanas, é a única maneira de experimentar verdadeiramente o divino. Por quê?
Ao longo da história humana, quase todas as culturas e religiões enxergaram o divino como um reflexo de nós mesmos. Enxertamos em Deus nossas próprias emoções e personalidades, nossas virtudes e nossos vícios, até nossos corpos. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos pediu a várias pessoas que descrevessem Deus: brancos imaginavam um Deus branco e negros imaginavam um Deus negro; progressistas imaginavam um Deus com traços femininos e conservadores imaginavam um Deus másculo. Todos descreviam a si mesmos. É assim que nosso cérebro funciona. Atribuímos características humanas a Deus para conseguir entendê-lo e nos relacionarmos com ele. A consequência negativa e óbvia disso é que também atribuímos a Deus todos os nossos defeitos, preconceitos e intolerâncias. É por isso que as religiões podem ser maravilhosas, inspirar amor e compaixão e refletir o que há de bom na natureza humana. Mas, com frequência, a religião também reflete o que há de pior na natureza humana: violência, misoginia, intolerância. Não dá para ter a parte boa sem a parte ruim. Por isso, defendo que façamos um esforço consciente para despojar Deus desses atributos humanos. O resultado desse esforço será uma vida espiritual mais profunda, pacífica e plural.
2. Ao desumanizar Deus e despojá-lo de atributos sobrenaturais como sua imensa bondade, sua misericórdia e seu poder, não abrimos mão de tudo aquilo de que gostamos nele?
Tudo isso que você descreveu são atributos humanos. Misericórdia, compaixão e amor são atributos humanos. Não são sobrenaturais. Criar um Deus que vê, age e ama do mesmo modo que nós vemos, agimos e amamos é um impulso natural. É por isso que o cristianismo é uma religião tão bem-sucedida. Toda religião atribui qualidades humanas a Deus, mas o cristianismo simplesmente diz que, se você quer saber como Deus é, é só imaginar um ser humano perfeito. É uma espiritualidade fácil e que cria intimidade, mas há limites. É mais satisfatório conceber um Deus que está além das questões humanas, um Deus que não é uma personalidade divina, mas uma força criativa fundamental no Universo.
3. No livro, o senhor argumenta em favor do panteísmo, que afirma que Deus não é um ser sobrenatural, mas tudo e todas as coisas que existem. O panteísmo é uma religião?
Religiões são instituições criadas por homens. Envolvem estruturas de comando e hierarquias. O panteísmo é uma posição espiritual, uma perspectiva. É possível ser um budista panteísta, um cristão panteísta ou até mesmo um ateu panteísta. Uma perspectiva panteísta nos ajuda a entender nosso lugar no Universo, nossa relação com Deus e a relação de Deus com a humanidade.
4. O senhor afirma que encontrou o panteísmo por meio do islamismo sufista. Como pessoas de outras tradições religiosas podem abraçar o panteísmo?
O panteísmo é um impulso religioso universal. Está presente no judaísmo, por exemplo. Na cabala (misticismo judaico) há a concepção do “hálito de Deus”, a noção de que Deus existe em todas as coisas. O panteísmo também está presente no pensamento de alguns místicos cristãos. Em religiões orientais, como o taoismo e o hinduísmo, há a ideia de que Deus não é uma pessoa, mas a totalidade do Universo. O panteísmo aparece até na filosofia. (O filósofo judeu holandês Baruch de) Espinosa argumentava que Deus é a única “substância” e que toda a criação são “modos” de Deus. Até na ciência moderna há a crença de que a matéria e a energia que existem hoje sempre existiram e sempre existirão. É nisso que os panteístas acreditam, que tudo o que existe é uma única substância. Nós chamamos a essa substância de Deus.
5. Como as pessoas podem se relacionar com um Deus que é a totalidade? Devemos orar? Devemos louvá-lo? O que fazer com os textos sagrados?
É por isso que o panteísmo, embora exista em todas as religiões e tenha sido a primeira forma de espiritualidade humana, nunca foi muito popular. As pessoas se perguntam: “Se Deus é a totalidade, por que ir à igreja? Por que orar?”. Um panteísta responde que não são essas práticas que mudam quando se entende que Deus é a totalidade, é nossa mentalidade que muda. Eu, por exemplo, às vezes vou à igreja com minha esposa e às vezes vou à mesquita. Os templos e as hierarquias não importam. O que importa é o espírito incorporado no grupo de pessoas que, juntas, concentram sua devoção ao divino. Eu oro o tempo todo. Eu não oro para que meu time ganhe ou pedindo coisas. Orar é refletir sobre mim mesmo e meu lugar no Universo. Todo o meu dia é uma oração. Eu vejo Deus em tudo e em todos. Ser um crente devoto é se devotar a todas as coisas — porque elas são Deus. Para muitos, a religião promove uma espiritualidade fácil: não precisam pensar, porque pensam por elas e lhes dizem o que fazer. Para mim, isso é ser uma criança espiritual. A maioria de nós somos crianças espirituais. Devemos crescer, aprender a ser adultos e reconhecer que não precisamos das aparências, mas daquilo que está além delas.
6. As religiões propõem códigos éticos e morais. O panteísmo tem uma ética a nos oferecer?
A religião é tão boa em fomentar a moralidade como a imoralidade. A Torá diz: “Ama teu próximo como a ti mesmo”. Mas também manda escravizar todos os incrédulos, sejam eles homens, mulheres ou crianças. Jesus mandou oferecer a outra face, mas também disse: “Não vim trazer paz, mas espada”. O Corão diz que aquele que mata um indivíduo mata toda a humanidade, mas também manda matar todos os idólatras que você encontrar. As religiões têm muitas sugestões imorais. Podem ser usadas para o bem ou para o mal, promover a compaixão ou a violência. Se alguém age corretamente porque espera uma recompensa ou teme a punição divina, como uma criança que se comporta bem para ganhar um pirulito, qual o sentido? Um panteísta não se comporta como uma criança. Eu tento agir corretamente porque quero refletir o divino que há em mim. É daí que deriva a ética de um panteísta. Eu entendo que há quem prefira ganhar um pirulito, mas eu defendo que cresçamos e deixemos de ser crianças espirituais.
7. A religião está na origem de vários conflitos políticos. Esse Deus com atributos humanos às vezes parece ter opiniões políticas fortes. Quais as implicações políticas do panteísmo e da crença em um Deus desumanizado?
Religião e política são fenômenos parecidos. Religião é uma forma de identidade e afeta todos os aspectos de nossa vida: nossa visão de mundo, nossas opiniões políticas, como pensamos a economia e a sociedade. Não dá para separar política e religião, como defendem os progressistas, porque as pessoas votam influenciadas por princípios morais baseados na religião. Nos Estados Unidos, nacionalistas brancos e pouco educados, que se consideram seguidores da Bíblia, acreditam que devemos ser um país branco. Por isso temos um presidente racista. Eles fundiram identidade religiosa e identidade política, criando uma bagunça tóxica. Um panteísta diz que todos são Deus, não importa a cor da pele, se você é conservador ou progressista, você é um ser divino. Isso permite uma separação maior entre política e religião.
8. Se a religião fornece uma identidade, que tipo de identidade é fornecida pelo panteísmo?
Identidade é como nós definimos a nós mesmos. E nós sempre nos definimos em oposição a um outro: eu sou católico, não protestante; eu sou cristão, não muçulmano; eu sou branco, não negro. O panteísmo é uma nova espiritualidade para um mundo novo e globalizado, porque os panteístas se recusam a se definir em oposição a algo ou alguém. Se sou a mesma coisa que você e que esta mesa aqui na minha frente, o indivíduo perde toda a importância e eu ganho uma identidade global. Eu sou um com todas as coisas. No século XXI, vivemos uma tensão entre os globalistas, que dizem que somos todos iguais independentemente de nossa nacionalidade, e a reação fascista observada nos Estados Unidos e na Europa, onde as pessoas se aferram a sua nacionalidade. A religião segue uma lógica parecida com a lógica nacionalista. Se a religião é nacionalista, o panteísmo é globalista.
9. O senhor anunciou no Facebook que está fazendo uma viagem ao redor do mundo com sua família para expor seus filhos a práticas, crenças e culturas religiosas as mais diversas. Qual o objetivo dessa viagem?
Minha mulher e eu queremos que nossos filhos cresçam espiritualmente conscientes. Não nos importamos com a linguagem que eles vão usar para expressar sua espiritualidade. Não faz diferença se for uma linguagem cristã, muçulmana ou budista. Acreditamos que, se forem expostas a diferentes crenças e visões de mundo, as crianças podem desenvolver um espírito panteísta, entender que a fé que têm é expressa de centenas de maneiras diferentes. Quanto mais aprenderem sobre essas diferenças, mais vão reconhecer que a fé é real. A maioria das pessoas acredita que as crianças devem ser criadas numa única religião específica. Mas, quando crianças criadas assim crescem, elas começam a achar que religião é besteira e deixam de acreditar em Deus. Elas abandonam a fé porque não sabem a diferença entre Deus e a religião em que foram criadas. Ou então desenvolvem não uma relação com Deus, mas com a religião de seus pais. Quando lhes perguntam “No que você acredita?”, respondem coisas como “Eu acredito no cristianismo”. Mas o cristianismo é apenas uma linguagem para expressar algo mais profundo! Não queremos nenhuma dessas opções para nossos filhos. Por isso, decidimos fazer um experimento: estamos vendo se é possível expô-los a várias religiões e mostrar a eles como a fé é universal, para que, quando eles estiverem prontos, possam escolher uma dessas linguagens. Queremos que eles tenham uma espiritualidade ampla, e não limitada pela religião.

O ABUSO EM NOME DE DEUS

Intolerância e Democracia religiosas no tempo das novas mistificações
Deus sempre foi usado por pessoas e instituições como uma espécie de verdade que tudo justifica. Barbaridades e maldades foram feitas em nome de Deus.
Violências físicas e simbólicas são até hoje realizadas pelas mais diversas pessoas e religiões em nome de Deus.
Podemos citar exemplos históricos envolvendo intolerância religiosa, algo que se dá sempre em nome de Deus. Judeus, cristãos e muçulmanos de tempos em tempos massacram uns aos outros tendo como base a ideia de que o Deus único no qual creem está mais para o seu lado do que do lado dos outros. A caça às bruxas medieval, a perseguição a ateus e apostatas, não difere muito da contemporânea perseguição às mulheres e à homofobia das quais algumas Igrejas – instituições reconhecidas por sua misoginia – ainda estão cheias. Muitos dos crimes motivados pelo preconceito e pelo ódio tem como base ideias religiosas e obscurantistas sobre supostas verdades acerca da natureza humana e da natureza divina. Deus desde sempre é um tema que, como política e futebol, tem o poder de reunir fanáticos e separar cidadãos. Deus pode ser um perigo.
Para evitar guerras e violências é que se defende um Estado laico, um Estado sem religião oficial e que sustente a democracia religiosa, ou seja, o direito de cada um exercer sua crença respeitando a do outro. Democracia religiosa é algo que só um Deus amoroso pode desejar. Mas nem todo mundo usa um Deus bacana, um Deus do bem, para fazer religião, muita gente quando faz religião nem lembra que um bom Deus possa existir.
Assim é que se usa Deus – que nem imagina o que pode estar sendo feito em seu nome. Podemos dizer que, em nossa época, “Deus” está baratinho, pode ser vendido em qualquer esquina, basta alguém resolver explorá-lo como se explora uma criança na rua ou uma mulher sexualmente. A cafetinagem de Deus sempre foi um bom negócio.
É assim que, no Brasil, as igrejas crescem como nunca. O poder religioso exercido pelas igrejas é poder como outro qualquer: violência, força, dominação, controle para sua própria manutenção. O poder religioso não vem sozinho, ele implica o poder do dinheiro com o qual as três grandes religiões sempre estiveram envolvidas. Riqueza e pobreza defendida por uns e outros em tempos e contextos diversos serve ao poder econômico de poucos, como sempre. Qualquer igreja, de um modo geral, nada mais faz do que administrar a fé no contexto do capitalismo. A fé é usada como Deus é usado. Capitalismo é religião mesmo quando nenhum outro deus além do capital está em jogo, mas sempre que o capital se confunde com Deus, quando Deus é o próprio capital, então esse poder é levado a uma potência indescritível.
Diz-me o que fazes com teu Deus e dir-te-ei quem és
Deus é usado e constantemente abusado. Deus pode ser uma ideia boa quando se faz um bom uso dela. Mas quando se faz um mau uso, essa ideia causa muitos problemas. Justamente porque Deus é uma ideia incrível e todo mundo quer usar uma ideia incrível. A ideia de uma Deus único, patriarcal, soberano, que tudo sabe, que tudo escolhe, que tudo decide, combina muito com a sociedade humana. Todo mundo quer ficar do seu lado e ter sua proteção.
Porém, nesse contexto, Deus é instrumentalizado pelas religiões que o usam como uma espécie de poder absoluto. E quem não obedece ao padre ou pastor, que defende algo em nome de Deus, pode se dar muito mal, acusado de herege ou banido da comunidade em que a questão religiosa está dada como fundamental para o convívio e a participação. É como ser vegetariano em um churrasco.
As liberdades democráticas se exercem de muitos modos, e a religião necessariamente é uma delas. Isso nos faz pensar que a intolerância religiosa é um mecanismo de controle social. O fanatismo religioso, nesse sentido, é sempre muito útil. Muito fácil submeter os outros aos desejos e à necessidade autoritária que o fanático faz sua. Muito fácil usar o “meu Deus” como desculpa para todo tipo de violência simbólica ou física.
No Brasil o fundamentalismo religioso está em voga. Se novas igrejas de todo tipo surgem em cada esquina, é porque isso é permitido no contexto do Estado laico. Ao mesmo tempo, cresce a intolerância e outros vícios comuns às religiões. Isso significa que as igrejas que surgem não têm feito muito bem o seu papel sempre prometido de levar Deus – que deveria ser uma coisa boa – às pessoas.
Atualmente vemos um elogio das novas igrejas neopentecostais que dariam um lugar de reconhecimento ao povo invisibilizado. Alega-se que aquele sujeito invisibilizado por sua condição de classe tem um lugar de reconhecimento na igreja que ele procura ao deixar seu posto de trabalhador ou subtrabalhador. As pessoas abandonadas pelo estado e pela sociedade encontrariam um lugar na igreja. Aqueles abandonados pelas igrejas tradicionais também. Quem defende esse tipo de ideia tem toda a razão, o desamparo faz crescer a religião. Mas é uma razão precária e perigosa porque rebaixa o sentido do reconhecimento. Um trabalhador invisibilizado, uma pessoa desamparada, tem que ser reconhecido como sujeito de direitos e não como um pobre coitado que tem que agradecer ao sacerdote que vai extorqui-lo por chamá-lo pelo nome e lhe dar um olhar como esmola.
Pensa-se nesse tipo de teoria na base do sentimento de pena para com aqueles cidadãos que são rebaixados pelo sistema, e pelo discurso dos intelectuais que teriam compreendido o sentimento do povo, a pobres coitados dos quais pelo menos a igreja se ocupa. Ora, a igreja sempre usa os pobres para ter poder, como um dia usou os indígenas, como usa as mulheres, como usa as pessoas que sofrem dando-lhes em troca, quando convém, alguma migalha do seu poder.
Não estou pregando a impiedade, mas pondo em questão que o “reconhecimento” como categoria política não pode ser usada para fins perversos. Respeitar o sofrimento e a dor alheia, ou seja, ter compaixão, não pode ser tratado como mera piedade que só se sustenta enquanto muitos são rebaixados a pobres coitados.
Deus, um jogo de linguagem
A ideia de um deus único está envolta em muitos jogos de poder. Hoje em dia sabemos que jogos de poder são sempre jogos de linguagem. Jogos de linguagem implicam usos da linguagem.
Deus é um assunto que precisa ser analisado também nesse sentido, como um dispositivo de poder inserido em um jogo de linguagem. Nossa questão tem que ser “como se usa Deus” em um jogo de linguagem.
Se Deus existe ou não é uma questão falsa usada com fins específicos de mistificação. Todas as vezes em que alguém que acredita em Deus pergunta a um outro se ele acredita ou não em Deus, é provável que espere uma resposta positiva. Sempre me neguei a participar desses jogos. Todas as vezes em que me perguntaram se acredito ou não em Deus, preferi analisar a pergunta do que oferecer uma resposta.
Para certos crentes, sobretudo para os fundamentalistas religiosos, a hipótese de que Deus não exista não é muito boa. Para um crente fanático, a ideia de que o outro não acredita em Deus é devastadora. O crente fundamentalista não suporta que outros não acreditem nele. Porque “seu” Deus não vale para a sua alma, para os fins da sua subjetividade, mas sim como peça essencial em um jogo de poder no qual se usa a outra pessoa por meio de Deus. E, ao fazer isso, o que se faz é usar Deus, é instrumentalizá-lo mais uma vez.
Má fé e ideologia de Deus como abuso
Atualmente, no contexto do mau uso que se faz de Deus, pastores de igrejas neopentecostais ocupam o poder político no Brasil. Os pastores parlamentares são, de um modo geral, contrários a todos os avanços democráticos e aos direitos fundamentais e individuais. Como políticos muitas vezes são obscurantistas e oportunistas, capazes de desprezar direitos humanos e minorias e de, ao mesmo tempo, usarem esse espaço de debate e de poder como sendo sua propriedade.
A bancada evangélica no Congresso brasileiro cresce a cada eleição. Praticamente não há político, mesmo não sendo evangélico, que não leve em conta o peso do voto dos fiéis evangélicos em seus processos eleitorais.
A sustentação do Estado laico deveria ser cuidadosa com a candidatura e a eleição de líderes religiosos, de sacerdotes em geral, padres, pastores. Do mesmo modo que funcionários da mídia deveriam ser inelegíveis já que, de antemão, tem o capital espetacular e midiático que sempre pode se converter em votos fáceis.
A reflexão sobre a religião – que deve ser levada a sério para ajudar a diminuir a intolerância religiosa – não deve ser confundida com a crítica objetiva aos pastores evangélicos que passam a fazer política partidária e, com ela, buscam mudar os rumos do Estado laico que faz bem a uma sociedade de religiosidade plural. O que vale para juízes, a proibição de se dedicar à política partidária com vistas à eleição para cargos, deveria valer também para quem participa do poder religioso, ele mesmo, como todo poder, essencialmente político.
A relação entre religião e política implica a instrumentalização de uma pela outra. Isso quer dizer que os fins religiosos justificam os meios políticos, e os fins políticos justificam os meios religiosos. A ética, como reflexão sobre a ação, como preocupação com o outro, é jogada no lixo da história nesse arranjo.
As teorias e práticas obscurantistas de parcela dos pastores evangélicos em sua bancada cada vez mais poderosa, têm influenciado fortemente a mentalidade nacional e tem prejudicado a vida de muita gente. Mulheres, minorias religiosas, sexuais, étnicas, sem falar nas minorias de classe exploradas economicamente pelas próprias igrejas, estão na mira do que se configura como o mal radical realizado em nome da própria religião. Por mal radical define-se o mal que tem como objetivo simplesmente fazer o mal contra os outros. Uma espécie de mal profundo, um mal que se oculta em palavras mistificatórias, que não deseja a felicidade dos outros, que objetifica o outro como uma coisa, é disso que estou falando. O fiel é reduzido a alguém que se pode usar, seja para pagar o dízimo, seja para angariar o voto. O que está em cena é o mal pelo uso da fé que é a má fé.
Muitas igrejas sempre usaram de má fé para controlar o povo. Ao mesmo tempo, contam com a boa fé do povo e a manipulam como se as pessoas fossem incapazes de perceber o que se passa com elas. A isso podemos chamar de ideologia da fé. A fé usada para enganar, a fé manipulada, a fé transformada em mercadoria. E Deus servindo a isso tudo como se fosse um simples fiador. Mas é nisso que ele é transformado.
Se lembrarmos de propostas tais como a da “cura gay” ou do vem sendo chamado de “Ideologia de Gênero”, a gravidade da questão fica clara. As falas homofóbicas, os discursos misóginos (a ponto de se chegar a falar de estupro em potencial), a guerra contra a legalização do aborto como guerra contra as mulheres, não inova em nada a velha caça às bruxas da igreja que odeia as mulheres e homossexuais e que odeia a palavra gênero porque ela é uma palavra que desmistifica, que desmascara, que faz pensar. O que os pastores evangélicos têm proposto em diversos aspectos é simplesmente diabólico. Vindo de gente que se diz da fé, a coisa é ainda mais preocupante.
Essas práticas produzem um evidente controle da vida das pessoas e pode ser definida como oportunismo ideológico. As igrejas sempre fizeram isso, não é novidade o que pastores oportunistas das igrejas contemporâneas do mercado fazem. Apenas reeditam a mistificação e, num golpe de populismo por ignorância, abusam do povo e, para fazer vingar o seu abuso, usam Deus como ideologia.
Abusam, portanto, de Deus, mas como Deus não deve existir para elas, ou existe apenas como mercadoria, não há problema de consciência e eles seguem praticando o mal.

COEXISTÊNCIA CULTURAL E AS "GUERRAS RELIGIOSAS"


RESUM0

Com a multiplicação de ações terroristas de cunho religioso e de reações a elas no contexto de uma "guerra ao terror", o mundo atual parece submetido a uma série infindável de guerras de religião, corroborando a tese de Huntington sobre o "conflito de civilizações". Uma análise dos conflitos demonstra, porém, que as ações mais visíveis não configuram um conflito desse gênero, nem uma guerra entre religiões, mas um conflito de fanáticos diversos. Nas condições da globalização em curso, em que os diferentes convivem de maneira assimétrica, a revalorização das culturas é fenômeno marcante, que leva à adoção do "multiculturalismo" por quase todos os países. Seu equivalente internacional, idealizado para diminuir as tensões interculturais e prevenir o terrorismo, é a iniciativa das Nações Unidas chamada Aliança de Civilizações.

Palavras-chave: Conflito de civilizações; Religiões; Terrorismo; Multiculturalismo; Aliança de civilizaçõe

Para abordar esse tema nos tempos presentes, é melhor inverter a ordem dos conceitos e iniciar pelas "guerras de religião" adequadamente colocadas entre aspas. A razão das aspas é óbvia: diferentemente daquilo que as primeiras impressões fazem crer, nenhuma guerra de religião, no sentido normalmente atribuído a esse tipo de conflito, está ocorrendo agora, pelo menos quando se pensa nos embates militares que obtêm mais atenção de todos. Nem é necessário que ocorra.

De fato, a menos que retrocedamos alguns séculos, é difícil encontrar uma típica guerra de religião, ainda que certas situações como a da Argélia nos anos de 1990 e a do Noroeste do Paquistão hoje em dia pareçam aproximar-se daquele conceito. Depois da gigantesca expansão árabe-islâmica pela Ásia, África e Península Ibérica, das mal-sucedidas cruzadas medievais, ou da Guerra de Trinta Anos na Europa, que deu origem ao princípio internacional da não-intervenção em assuntos internos, o conflito de ideologias que mais se assemelhou ao de religiões foi a Guerra Fria. Parecido, mas não equivalente, com a guerra de religiões mais típica é o conflito árabe-israelense no Oriente Médio. Embora mantendo seus fundamentos étnicos e nacionalistas entre as duas partes adversárias imediatas - o Estado de Israel e os palestinos sem Estado -, essa questão não-resolvida, apoiada com parcialidade por potências externas, alimenta substancialmente a arraigada disputa entre o judaísmo e o islã em todo o mundo.

As guerras na antiga Iugoslávia, especialmente na Croácia e na Bósnia, assim como a Guerra do Golfo de 1991, que deram inspiração a Samuel Huntington em seu artigo de 1993, intitulado "Conflito de civilizações?", apenas remotamente se assemelham a guerras de religiões. A razão pela qual jornalistas e acadêmicos imediatamente absorveram essa idéia preexistente, atualizada e expandida por Huntington, foi precisamente sua abordagem simplista. O artigo parecia explicar, com seu título de três palavras, tudo o que vinha sendo observado e não era possível entender. Pouco importava se muitas das premissas do autor estivessem erradas (existe uma "civilização" específica e unificada latino-americana ou africana?), conceitos, adaptados por redução (Seria o mundo islâmico um monólito? A Grécia "ortodoxa" não seria parte do "Ocidente"?) e os fatos históricos, escolhidos à la carte por se amoldarem aos pontos a serem ressaltados. Afinal, erros, reduções e escolha arbitrária de fatos como ilustração são comuns a todos os ensaios.

Infelizmente, alguns intérpretes usaram a expressão - senão propriamente a descrição mais detalhada, conquanto distorcida, de Huntington - como o novo paradigma das relações internacionais. Certas ou erradas, as três palavras eram eficazes e tempestivas. Afinal, desde 1989 scholars e estudantes ansiavam por substituir o ultrapassado esquema da Guerra Fria, ele próprio, por sinal, muito simplista, a que antes estavam habituados. Como quase todas as pessoas, tais intérpretes desconsideravam o ponto de interrogação usado no título do artigo. Viam e vêem até hoje os conflitos contemporâneos como episódios de um combate inevitável entre duas grandes áreas culturais que se pressupõem intactas.

O problema maior, porém, materializouse quando conselheiros políticos de governantes poderosos adotaram esse modelo epistemológico como guia de ação. Optaram por linhas de conduta que se enquadravam no padrão do "conflito de civilizações", tendo a palavra "civilizações" como sinônimo de "religiões", como Huntington tendia a encará-la. Ao fazê-lo, cometeram erros grosseiros, absurdos, que agravaram tragicamente a situação de todo o mundo.

Guerras de religião e outros conflitos

Não se pode negar que a Guerra da Bósnia - que, aliás, estava apenas no início quando o texto de Huntington foi publicado - tenha tido um aspecto religioso importante. Na medida em que o principal elemento da "diferença bosníaca" na região era a religião islâmica, aquela herança histórica foi amplamente manipulada por líderes nacionalistas diversos da Bósnia e da Herzegóvina, assim como por seus amigos e inimigos externos próximos e distantes. "Bosníacos" nada mais eram do que os eslavos longamente estabelecidos há muito naquela parte da Península Balcânica que se haviam convertido ao islã sob o Império Otomano.1 

Curiosamente, foi Tito, líder da Liga dos Comunistas da Iugoslávia, quem os reconheceu como "nação", equiparando religião com nacionalidade, e estabelecendo para os muçulmanos e demais co-habitantes, croatas e sérvios, da velha Bósnia-Herzegóvina uma república federada, precursoramente "multiculturalista". Sabe-se também que, durante a guerra, no período entre 1993 e 1995, o apoio de grupos islâmicos de fora, em armas, dinheiro e pessoal de combate, foi importante para os bosníacos, ou muçulmanos - geralmente seculares - da Bósnia, único grupo efetivamente atingido pelo boicote de armamentos do Conselho de Segurança das Nações Unidas, vigente desde 1991, contra as partes em conflito nos territórios da ex-Iugoslávia.2

A guerra de independência da Croácia, um pouco antes, também tivera conotação religiosa. Antiga parte do Império Austro-Húngaro, a Croácia era historicamente católica, enquanto os sérvios, identificados por eles próprios e pelos outros com a Iugoslávia de antes e depois da Segunda Guerra Mundial, eram cristãos ortodoxos de origem. Essa diferença entre sérvios e croatas, mais virulenta do que aquela entre sérvios ou croatas e bosníacos - porque muito aguçada pelos nazistas ocupantes e locais em seu Estado-fantoche croata -, também foi alimentada por líderes políticos vários, como elemento demarcador das diferenças "nacionais". Contudo, o fato de os bosníacos e croatas da Bósnia terem se reunido no final da guerra respectiva e formarem uma entidade binacional comum, de que se separou a República Srpska, no novo Estado independente da Bósnia-Herzegóvina , já é de per si clara indicação de que os conflitos na ex-Iugoslávia não haviam sido "guerras de religião". Além do mais, quando aquelas guerras ocorreram, na primeira metade da década de 1990, quase todos os indivíduos e grupos diretamente envolvidos tinham sido e ainda eram essencialmente ateus, pertencentes à mesma "civilização" representada pela ideologia marxista.

A primeira Guerra do Golfo contra o Iraque, simultânea àqueles conflitos pós-Guerra Fria nos Bálcãs, parecia ter tonalidade religiosa, porque foi, sobretudo, uma guerra da Otan contra um Estado muçulmano - que havia violado a fronteira e invadido outro Estado muçulmano, o Kuwait. Na verdade, em todos esses casos, assim como na guerra no Kossovo - primeiramente interna, depois internacional em diversos sentidos -, as religiões foram usadas como pretexto, encobrindo outras razões.3 Aparentemente nobres em alguns casos, como a defesa do direito internacional e dos direitos humanos de populações envolvidas, essas razões não diminuíam os interesses políticos, estratégicos e econômicos, mais ou menos evidentes, como o controle de campos de petróleo, subjacentes à intervenção estrangeira. Ou a atração de apoio internacional para um grupo específico.

Atualmente, os conflitos são ainda mais complexos. Contrariamente às primeiras impressões, eles tampouco constituem guerras de religião no sentido regular do conceito. Em certa medida, pode-se até questionar se são realmente guerras.

Há, evidentemente, ataques brutais de grupos étnicos e segmentos religiosos de certas populações contra seus irmãos inocentes, assim como entre forças armadas de coalizões militares e grupos religiosos que se consideram em guerra em nome de Deus. Há também, com certeza, conflitos intersectários que vêm destruindo países específicos; antagonismo extremista de certos grupos de crentes contra correligionários supostamente desencaminhados; bombardeios de vários lados contra alvos encarados como símbolos do Mal; operações militares de vingança ou compensação sob a cobertura de prevenção a agressões, estimuladas por citações religiosas. Há, além disso, é claro, o conflito entre Israel e os palestinos, um choque de nacionalismos e pela sobrevivência coletiva, profundamente marcado pela religião.

Não obstante, nenhum dos conflitos armados correntes se encaixa no molde do "conflito de civilizações", tomando-se ou não a palavra "civilização" como significante de "religião". Acima e por baixo de todas essas manifestações de violência, o conflito essencial de nosso tempo se dá entre fanáticos de espécies variadas.

Fundamentalismo e terrorismo
Ultrapassa o escopo deste artigo adentrar nas diferentes escolas de pensamento do islã ou do cristianismo. Tal matéria requer um conhecimento especializado de que não disponho. Entretanto, pode ser útil apontar alguns fatos, às vezes desconsiderados, que geram confusões quando se abordam os principais aspectos dos conflitos de hoje.
Em primeiro lugar se coloca o crescimento generalizado daquilo que se chama "fundamentalismo" em todos os credos.

A palavra, nas línguas ocidentais, vem do entendimento puritano anglo-americano, divulgado nos Estados Unidos, de que os crentes devem se ater aos "fundamentos" da fé cristã: a Bíblia e suas "narrativas fundamentais". Sua origem remonta ao século XIX e à reafirmação de dogmas contra o chamado liberalismo cristão e o Iluminismo em geral. O fundamentalismo evangélico atual, protestante ou católico, manifesta-se mais visivelmente na defesa do "criacionismo" bíblico, por oposição ao evolucionismo científico darwinista. Uma vez estabelecido o rótulo, não negativo, de "fundamentalista", para aquele que rejeita a interpretação de textos sagrados, observando-os em sentido literal, foi ele transferido dos cristãos anti-hermeneutas do século XIX aos defensores de posições assemelhadas em outras religiões. Com essa explicação em mente, não é sem sentido dizer, com adaptações, que não somente os protestantes, mas também os católicos romanos, assim como o islã, o judaísmo, o hinduísmo e o budismo têm seus próprios tipos - no plural - de "fundamentalismo".

Evidentemente, nenhum seguidor convicto de qualquer religião aceitará o uso de tal palavra com conotação negativa, uma vez que a própria essência da fé requer a observância de tradições e ditames inexplicáveis pela razão. Além disso, o termo não se aplica aos ramos longamente estabelecidos do cristianismo, como a igreja ortodoxa - um nome que fala por si mesmo -, ou do islã, como os xiitas por oposição aos sunitas. Similarmente ao que aconteceu com os primeiros protestantes e católicos - ou papistas -, suas diferenças se definiram ao longo dos séculos de maneira tão marcante a ponto de formarem cultos com hierarquias próprias, separadas e amplamente reconhecidas.

O significado contemporâneo do chamado "fundamentalismo", conquanto referente principalmente às religiões, aplica-se metaforicamente a outros campos. Os "fundamentalistas" têm se multiplicado por toda parte, e o "fundamentalismo" tornou-se a forma mais difundida de se "tomar posição", inclusive na mais material de todas as áreas: a economia. Desde o fim da Guerra Fria, a crença em preceitos chamados neoliberais, baseados na idéia do mercado como regulador benigno a distribuir justiça e sabedoria para todos, foi apresentada e imposta como um consenso universal, do qual não haveria escapatória. Na ciência econômica, a inspiração viria do laissez-faire do século XVIII e da confiança na "mão invisível" do mercado, com menos interferência estatal do que o próprio Adam Smith pretendia. O resultado dessa crença "fundamentalista" no livre-mercado como único padrão valorativo aceitável levou não somente à crise econômico-financeira de 2008-2009, da qual parecemos estar-nos recuperando com intervenção estatal maciça, mas também a outras formas de confusão societária. Tais formas confundem o conceito de liberdade com comportamento antiético, democracia com corrupção, emancipação com provocação, livre-arbítrio secular com transgressão, individualismo com ganância sem limites.

Existem outros efeitos colaterais do tipo de "fundamentalismo econômico globalizado" como resultado dessas distorções. Um deles manifesta-se na forma de uma revalorização de tradições como reação à indiferença social e ao consumismo desenfreado que o neoliberalismo tende a desenvolver. Juntamente com o novo apego a velhas regras, teoricamente superadas pelo "desencantamento" weberiano do mundo moderno, a religião reemerge, pela fé e pela razão, na cena política global. O renascimento religioso ocorre não somente em comunidades e países religiosos, mas também em Estados seculares. Ainda que com o objetivo de garantir alguma forma superior de controle para o conjunto, incontrolável por meio do direito e da aplicação policial da lei, governantes de Estados constitucionalmente seculares vêm também recorrendo à religião e a líderes religiosos, na defesa de objetivos comuns.

Fundamentalismo não é, certamente, "terrorismo", especialmente na esfera da religião. Nem significa necessariamente a rejeição total de crenças e comportamentos diferentes. Entretanto, para fundamentalistas intransigentes do Oriente e do Ocidente, a diferença pode às vezes ser tolerada, mas entre "os outros", não entre os crentes da mesma comunidade. Embora as primeiras versões do fundamentalismo dentro de denominações protestantes e a salafyyah islâmica (o caminho dos "bons predecessores") remontem a épocas muito anteriores à cena presente; a recusa a formas "racionais" de crença constitui um dos ingredientes culturais típicos de nossos tempos. Mais apegada a símbolos exteriores de identificação - como códigos de indumentária, preces públicas, demonstrações místicas de arrependimento, exorcismos e outros ritos - do que à devoção íntima, à oração individual e às explicações teológicas para descobertas da ciência, o renascimento religioso de agora, em todas as fés, escolhe voluntariamente aquilo que Olivier Roy chama de "santa ignorância".4

O segundo fenômeno que provoca confusões cognitivas é o chamado "terrorismo contemporâneo", expressão que logo traz à mente a destruição do World Trade Center, em Nova York, em ações multiplamente assassinas e suicidas. Que elas constituíram atos abomináveis de terrorismo, não há a menor dúvida e é importante não fazer confusão com isto. Ainda que tenham sido precedidas por muitos outros atentados de fanáticos, obcecados por fé distorcida, nenhuma ação anterior tivera a mesma dimensão espetacular dos golpes mortíferos de 11 de setembro de 2001 contra as torres gêmeas de Manhattan.

Alguns analistas políticos ainda relutam em utilizar aquele rótulo, de "terrorismo", primeiramente aplicado a uma fase da Revolução Francesa - o Terror -, apesar das numerosas convenções que se referem explicitamente ao terrorismo, sem que exista uma definição internacionalmente aprovada para o conceito.5 No entanto, o uso do terror foi mencionado como terrorismo e condenado sob este nome, sem reservas, até pela Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993, em Viena. Sua Declaração e Programa de Ação, adotada sem voto por todas as delegações, supostamente representando Estados de todas as religiões e sistemas políticos, afirmava:
Os atos, métodos e práticas terroristas em todas as suas formas e manifestações, bem como os vínculos existentes em alguns países entre eles e o tráfico de drogas são atividades que visam à destruição dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e da democracia e que ameaçam a integridade territorial e a segurança dos Estados, desestabilizando governos legitimamente constituídos. A comunidade internacional deve tomar todas as medidas necessárias para fortalecer a cooperação na prevenção e combate ao terrorismo.6
Sem entrar nos significados da palavra "terrorismo" e estando eu plenamente consciente de que o "terrorista" para alguns é o "herói", o "lutador pela liberdade", ou o "mártir" para outros - ou até para os mesmos, em circunstâncias diferentes -, o que torna a forma contemporânea de terrorismo tão desnorteante não são os atos de violência difusa por si próprios. O terrorismo, quaisquer que sejam a definição e os perpetradores, sempre visou a espalhar o medo e a insegurança, violando direitos humanos e liberdades fundamentais, ferindo e matando não-combatentes. Foi com esse entendimento corriqueiro que a Conferência de Viena "universalmente" denegou legitimidade a ele, propondo cooperação internacional para combatê-lo.
É verdade que o terror no passado era considerado uma "técnica" usada por anarquistas e outros insurgentes contra o Estado, na qualidade de instituição demarcada, específica.7 Com esse pano de fundo, não causaria surpresa a condenação do terrorismo por representantes de todos os Estados, como ocorreu em Viena.8 Hoje, porém, as manifestações daquela "técnica" em atentados ultrapassam delimitações territoriais, políticas e religiosas.

Conquanto eu obviamente rejeite a implicação de que o terror possa ser intrinsecamente relacionado ao islã, ao judaísmo, ao cristianismo, ao hinduísmo, ao budismo ou a qualquer outro sistema de fé transcendental, concentrarei aqui a atenção nos aspectos do terrorismo contemporâneo que possam estimular a noção de um "conflito de civilizações": de um lado, explosão de bombas, bombardeios e tomadas de reféns civis pelos chamados "djihadistas" - não de indivíduos ou grupos insurgentes motivados por causas definidas mais concretas - e, de outro lado, muitas das ações militares ou de segurança doméstica de forças ocidentais e seus aliados.9
Compartilho a percepção de Habermas de que acontecimentos como os de 11 de setembro - seguidos das bombas detonadas nos metrôs de Londres e Madri -, desprovidos de objetivo minimamente realista, ficam sem conteúdo político.10 

Acredito, inclusive, que a aceitação ou a atribuição da intenção de construir um califado planetário na Terra aos autores de atentados como os que destruíram o World Trade Center é um reconhecimento de legitimidade a eles que nenhum outro muçulmano lhes confere. Contrariamente ao que dão a entender certos estudiosos das diversas correntes do chamado fundamentalismo islâmico, nenhum dos teóricos muçulmanos inspiradores de movimentos radicais propôs ataques a inocentes, fossem estes "infiéis" ou correligionários, sem clara finalidade política. Assim, procurarei não utilizar o galicismo "islamista", nem o adjetivo "islâmico" ou qualquer outra expressão que automaticamente associe o islã a atentados variados. Observo, assim, postulação compreensível dos seguidores dessa religião, que lembram não serem chamados de cristão ou "cristianistas" os autores de outros atentados no Ocidente.11 Por outro lado, abordarei também aspectos das formas correntes de combate ao terrorismo, com objetivos conhecidos evidentemente improváveis, que se equivalem, em termos práticos, a técnicas de terror.

O que caracteriza o "terrorismo contemporâneo" como um tipo sui generis de terrorismo não é a tecnologia empregada nas ações, nem a forma dos atos de violência per se. A tecnologia moderníssima, com comunicação virtual e desterritorializada, de arregimentação de agentes é, sem dúvida, um de seus aspectos importantes. A outra maior "novidade" encontra-se na incompreensibilidade dos objetivos últimos das ações perpetradas, assim como na reação que alguns países decidiram adotar contra elas.

Objetivos terroristas

Embora a figura do homem-bomba constitua a imagem emblemática do terrorismo contemporâneo, o fenômeno do auto-sacrifício absoluto voluntário não constitui novidade. É fato que não se podem comparar atacantes-suicidas com os mártires religiosos de todas as fés ou heresias, que se submetiam a formas excruciantes de tortura e morte para afirmar sua devoção, sem causar dano aos demais, sempre se poderão lembrar, porém, os kamikazes do fim da Segunda Guerra Mundial, avião ou torpedo, como o piloto-suicida ou homem-bomba de hoje, o kamikaze japonês tinha a intenção de carregar com sua morte a vida de inimigos. Mais recentemente, nos anos de 1970 e 1980, os militantes da luta de independência da Palestina já vinham recorrendo a ataques suicidas em diversas operações. Nos casos dos kamikazes japoneses e dos homens-bombas palestinos, porém, o objetivo político-militar estratégico foi sempre evidente. Hoje, a situação é outra, mais difícil de interpretar ou apreender pela lógica a que estamos habituados.

Entre as já incontáveis histórias reais que se podem ler sobre os terroristas-suicidas atuais, uma publicada em agosto de 2009 pareceu-me particularmente eloqüente. Envolvia uma mulher, de um grupo de dezesseis candidatas a suicidas-atacantes presas na província de Diyala, no Iraque, desde o começo de 2008, algumas das quais flagradas já com coletes de bombas no corpo. Visitada mais de uma vez pela jornalista autora da matéria, a prisioneira aparentemente desenvolveu alguma afeição pela entrevistadora. Não obstante, quando indagada se seria capaz de matar a própria jornalista, se recebesse instruções nesse sentido, a prisioneira, após breve hesitação, respondeu, conforme citado no texto: "Se eles insistissem, sim. Sendo você estrangeira, seria halal matá-la"12. 

É verdade que a entrevistadora era americana, e que a mulher iraquiana tinha perdido seus cinco irmãos mujahedin, mortos pelas forças dos Estados Unidos. Além do mais, ninguém questiona o fato de a Al Qaeda e outros grupos similares, organizados em redes de comunicação pela internet, repudiados pelos correligionários no poder em todo o islã, consideramse em guerra com o Ocidente, mirando agora suas ações particularmente contra as forças ocidentais no Iraque e no Afeganistão - não menos do que os Estados ocidentais e seus aliados se consideram em guerra contra esses grupos e redes extremistas. Mas quem propiciou e definiu esse objetivo prioritário inteligível, de expulsar as tropas de ocupação estrangeiras em territórios do islã, não foram os homens-bombas suicidas ou seus mentores terroristas. Foram os Estados que para lá enviaram suas tropas. Dos terroristas contemporâneos as ações continuam muitas vezes dirigidas a alvos menos compreensíveis, como as organizações humanitárias presentes, freqüentemente integradas por pessoal local ou de origem oriental e muçulmana.
Sabe-se que alguns fundamentalistas islâmicos radicais têm, há tempos, teorizado em favor da violência contra outros muçulmanos - proibida pelo Corão - encarados por eles como traidores do islã, logo "infiéis", com linguagem que remonta ao tempo das cruzadas. Fatos históricos comprovam com abundantes atentados em muitos países a colocação em prática dessas teorias - que, aliás, nunca foram exclusividade islâmica. Extremistas de diversas fés, causas e ideologias têm há muito perpetrado atentados políticos e massacres envolvendo seus irmãos mais próximos. Motivados pela religião ou por crenças não-religiosas, a explosão do edifício federal em Oklahoma City em 1994 por norteamericano branco anglo-saxão, o assassinato de Itzhak Rabin, em 1995 por judeu israelense, o ataque com gás venenoso no metrô de Tóquio, também em 1995, por japonês budista são apenas três exemplos dos inúmeros casos congêneres ocorridos fora do contexto do islã. Lógica semelhante subjaz a outros atos, de feições superficialmente distintas, como, por exemplo, os incêndios provocados por cristãos em clínicas norte-americanas que praticam o aborto.

Poucos dias após a publicação da matéria sobre as mulheres-bombas no Iraque, o mesmo jornal internacional relatava que um homem-bomba havia explodido em área limítrofe entre o Afeganistão e o Paquistão, no primeiro dia do mês de Ramadã, junto de guarda-fronteiras tribais, matando um total de 22 pessoas. Segundo uma testemunha, o suicida teria oferecido comida aos policiais, que estavam se preparando para a quebra do jejum religioso, pouco antes do crepúsculo, sendo convidado a unir-se ao repasto no gramado.13 Se o atacante-suicida estava testando a devoção religiosa dos guardas antes que o último raio de sol daquele dia se apagasse, ou, mais provavelmente, se tinha sido simplesmente instruído a matar os guardas no contexto das guerras tribais afegãs, pouco importa. O que conta aqui, nesse atentado com mortes numerosas, hoje quase rotineiro, é o fato de o perpetrador não estar cometendo um ataque contra hereges, infiéis ou inimigos religiosos. Ele e seus instrutores estavam ou combatendo o "pecado", ou praticando um ato típico do terrorismo contemporâneo para realizar um assassinato coletivo tribal dentro da mesma esfera cultural e política. Afinal, não havia qualquer indício de que os tais "guarda-fronteiras tribais" estivessem ali sob ordens do Ocidente, que trabalhassem para os americanos, ou sequer que sua tribo fosse ligada à aliança militar liderada pelos Estados Unidos. Não disponho, aliás, de qualquer indicação de que as rivalidades étnicas no Afeganistão sejam especificamente baseadas em religião.14

Se os episódios de violência atuais devem ser interpretados como práticas de uma guerra dentro de uma mesma religião, ou se constituem aspectos de uma guerra de religiões, envolvendo, de um lado, forças militares estatais e, de outro, extremistas religiosos, muitos dos quais oriundos dos mesmos Estados que combatem, é um ponto a ser discutido. De acordo com declarações de líderes de movimentos islâmicos que utilizam homensbombas e pilotos-suicidas, eles têm plena convicção de que se encontram em "guerra santa", uma forma extrema de djihad contra o Mal e os infiéis, de proporções planetárias. Posição simétrica parecem - ou, melhor, pareciam - ter os líderes ocidentais das coalizões militares formadas para combater esses movimentos. Alguns dos chamados neoconservadores dos Estados Unidos são, aliás, devotos de denominações evangélicas enquadradas no fundamentalismo cristão original.
Nem uns, nem outros, contudo, são suficientes para compor um verdadeiro "conflito de civilizações". Ao contrário, independentemente das convicções que possam respectivamente alimentar, de que se acham em fitna ou djihad, guerra civil ou resistência a ocupação estrangeira, guerra santa, cruzada, ou guerra preventiva, intervenção humanitária ou operação militar de vingança, os participantes dos conflitos atuais mais violentos contradizem o paradigma intercivilizacional disseminado por Huntington. Enquanto apenas um dos lados se afigura "irracional" a ponto de recorrer ao suicídio individual de correligionários como tática de uma estratégia sem finalidade, ambos constituem, na prática, independentemente dos objetivos de cada, adversários extremos em combates "não-civilizados" de fundamentalismos distintos. A menos que nos disponhamos a aceitar esses fundamentalistas dos dois lados como representantes legítimos do Ocidente e do islã, admitindo que o iluminismo seja pior que todas as tradições e se acha superado por uma pós-modernidade irremediavelmente regressiva, esse combate de dois grupos não configura uma verdadeira guerra de religiões.

O terror contra o terror

Passando agora à forma de reação que alguns Estados decidiram adotar contra o terrorismo, as definições e os rótulos são igualmente elusivos. Se levarmos em consideração as declarações bíblicas e maniqueístas, com conotação religiosa explícita, feitas por certos líderes ocidentais, especialmente na fase de consideração do curso de ação a adotar como resposta aos atentados do 11 de setembro, a impressão que se tem é de que esses líderes, como a Al Qaeda, estavam convencidos de que se encontravam num conflito de religiões. Com o primeiro anúncio de uma "cruzada" contra aqueles que davam "santuário" aos terroristas e operações militares sob nomes como "Justiça Infinita" e quejandos, a reação parecia enquadrar-se num plano transcendente, também noumenal. Ecoavam a postura de seu inimigo mais procurado, líder de um movimento autodeclarado em guerra contra os "judeus" e "cruzados". Endossavam a posição do oponente de que os ataques do 11 de setembro tinham "dividido o mundo em duas moradas: a morada dos crentes, onde não há hipocrisia, e a morada da descrença, que Deus nos livre dela!".15 Embora as primeiras qualificações religiosas tenham sido rapidamente alteradas em aparente correção de um faux pas, substituídas por termos mais "apropriados" - na prática, tão ruins quanto os anteriores -, e apesar das afirmações e reiterações de que a coalizão comandada pelos Estados Unidos não estava em guerra com o islã, mas contra o Terror, o contínuo uso de expressões bíblicas, associadas a outros fatores - como a utilização ofensiva do Corão para coagir prisioneiros em interrogatórios -, fortaleceu a sensação de que aquelas estratégias militares, questionáveis de todos os pontos de vista, ressaltavam a correção do paradigma de Huntington.
Pior do que qualquer impressão gerada por palavras e gestos simbólicos, os líderes ocidentais pareciam, com sua conduta e as peculiaridades que a cercavam, haver deliberadamente optado pelo tipo de reação desejada pelos próprios terroristas.

Morando nos Estados Unidos, ainda que não em Nova York, por ocasião do 11 de setembro, eu próprio me recordo da perplexidade pavorosa que os ataques provocaram em todo o país. Em larga medida, também compartilhei do medo e da sensação de insegurança gerada por eles e amplificada pela imprensa, para não falar dos constantes "alertas laranja e vermelho" emitidos pelas agências do governo. Lembro-me igualmente de como era fácil promover suspeitas, intolerância e "patriotismo" exaltado numa população ofendida e amedrontada, contra opiniões discordantes. Nunca esqueci como Susan Sontag foi boicotada depois de publicarem suas observações contrárias à interpretação de que os ataques haviam sido perpetrados contra a "civilização" e o "mundo livre", opinando que se dirigiam à "autoproclamada única superpotência do mundo, em conseqüência das alianças e ações americanas".16 Sem subscrever opinião tão contundente, por sinal também simplista, mas certamente sem submergir no clima de hipersensibilidade prevalecente, podia-se facilmente compreender que bombardeios a um país pobre e já destroçado em guerras anteriores não seriam nunca uma boa reação. Quanto mais se o país-alvo era muçulmano, com inclinações fundamentalistas. Ação militar era precisamente o tipo de reação que os mentores dos ataques ao World Trade Center e ao Pentágono deveriam desejar. Pois era bastante evidente que a força armada de per si não tem condições para desmantelar uma rede de fanáticos dispersos, que se coordenam pela internet e recorrem a operações suicidas. Quase ninguém ousava dizer isso abertamente. Quando alguma personalidade conhecida o fazia, o que diziam não era divulgado adequadamente nos principais meios de comunicação norte-americanos.17 Indagado das razões pelas quais a Otan estava hesitando em unir forças com Washington para atacar os talibãs, o sempre indomável Noam Chomsky respondeu:
Ela reconhece, assim como qualquer um com conhecimento adequado da região, que um assalto maciço a uma população muçulmana seria a resposta às preces de Bin Laden e seus associados e levaria os Estados Unidos e seus aliados a uma "armadilha diabólica", nas palavras do ministro do exterior francês.18
Na França, com uma perspectiva mais filosófica, mas não afastada da realidade, em novembro de 2001, Jean Baudrillard, para quem o terrorismo seria o fenômeno extremo decorrente da globalização, qualificava a ação militar como um falso acontecimento, particularmente sem sentido. Explicava sua interpretação acurada, invertendo a célebre definição de Clausewitz para a guerra, de maneira a descrever essa guerra contra o Terror como "a continuação da falta de política por outros meios".19

Enquanto as declarações políticas e operações militares contra os terroristas pareciam confirmar a noção de um conflito de civilizações, ainda que não exatamente uma guerra de religiões - um dos aliados vitais na Coalition of the Willing era o muçulmano Paquistão -, outras práticas contra o terrorismo levavam a crer na vitória daquilo que elas se dispunham a combater.

É difícil sumariar brevemente todas as medidas de segurança adotadas por países ocidentais a enviarem a mensagem de que "o Ocidente" havia decidido abandonar aquilo que sempre reivindicara como "valores ocidentais". Muitas dessas medidas constituíam violações grosseiras de liberdades e direitos civis, histórica e doutrinariamente considerados como a primeira geração dos direitos humanos. Começando por detenções arbitrárias, feitas com base em estereótipos raciais e religiosos, seguidas de prisão extrajudicial prolongada, da recusa em obedecer às convenções de Genebra sobre o direito humanitário e do emprego de eufemismos ridículos para evadir definições legais preestabelecidas, as medidas de segurança, estendidas a práticas de vigilância crescentemente generalizadas, com escuta telefônica, gravações em áudio e vídeo etc., correspondiam à abolição não-decretada do direito à intimidade de populações inteiras, com foco em grupos específicos. No degrau mais baixo da renúncia aos valores auto-atribuídos como ocidentais situava-se o recurso à tortura, muitas vezes associada à prática, igualmente infame, das chamadas renditions: entrega de prisioneiros para serem interrogados com "técnicas fortes" em países estrangeiros, numa "terceirização" do jogo sujo reminiscente das terceirizações privatizantes recomendadas pelo neoliberalismo. Tais absurdos ocorriam, por sinal, com ampla divulgação pela imprensa e conhecimento do público, denunciados como violações grosseiras de direitos humanos universais.20 Em suma, desde a Segunda Guerra Mundial, nunca a visão de Giorgio Agambem de que o mundo vive atualmente num Estado de exceção permanente21 se afigurara tão acurada.

Chega-se assim à questão essencial: se, para termos êxito em batalhas específicas, precisamos abdicar dos valores que representam nossa identidade moral, quem, afinal, estará ganhando a guerra? Tal questão, que deve ter habitado o fundo de nossas mentes já há algum tempo, adquiriu sinistra atualização, desde o recrudescimento de explosões coordenadas de bombas no Afeganistão, imediatamente antes das eleições presidenciais de agosto de 2009, juntamente com advertências e ameaças destinadas a manter, pelo medo, a população afegã distante das urnas.22
Ademais do Afeganistão, dos talibãs e da Al Qaeda, permanece a questão da ocupação do Iraque. A esta altura, soa absurdo recomeçar a discussão das causas da ação militar decidida de maneira unilateral pela liderança ocidental de uma aliança ad hoc. Está hoje mais do que comprovado que as razões alegadas para o ataque eram erradas, a operação, injustificável, seus resultados finais, ainda instáveis, e seus efeitos de longo prazo, imprevisíveis. Soa também irrelevante chamar a ação de "intervenção", "prevenção", "invasão" ou qualquer outro nome. O fato concreto hoje é que existe um novo governo no país, eleito pelos iraquianos, reconhecido no exterior, e esse mesmo governo favorece a retirada das tropas estrangeiras. Por mais que os terroristas ainda sacudam o cenário iraquiano inesperadamente, e malgrado o arremesso de sapatos humilhantes contra seus patrocinadores, os atores políticos locais encontram-se hoje legitimados. Não há como negar, entretanto, que essa segunda intervenção militar no Iraque parece confirmar a impressão propiciada pela primeira, de que um conflito de civilizações está em curso.

A concentração prioritária de terroristas e homens-bombas, desde 2003, naquele país, facilita a interpretação de que se trata de forças de resistência à ocupação estrangeira. Por mais que algumas das correntes fundamentalistas extremadas venham ensinando, há muito, ser halal matar infiéis, a maneira pela qual a prisioneira potencialmente suicida de Diyala se via, e se reconhecia capaz de matar a entrevistadora norte-americana, era como resistente anti-estrangeira, não como "djihadista".

Não obstante, cabe a pergunta se isso é realmente o que está acontecendo, se a visão dos terroristas e homens-bombas contemporâneos como resistentes, comparáveis aos maquisards partisans antinazistas na Segunda Guerra Mundial, aos insurgentes argelinos na luta de independência em meados do século XX, ou aos milicianos palestinos atuais, é minimamente verdadeira. Não seriam os próprios iraquianos e afegãos comuns e inocentes os alvos principais da maioria dos ataques? Os orientadores dos terroristas suicidas seriam realmente "terroristas islâmicos", assim rotulados num Ocidente que não reconhece suas culpas?23 Não são esses terroristas rejeitados e combatidos pelo islã? Não são eles, muitas vezes, cidadãos nascidos e criados no Ocidente? Não estariam agora apenas provisória e majoritariamente reunidos em território iraquiano e afegão, deste extravasando as fronteiras com o Paquistão, onde parecem confundir-se com os talibãs na tentativa de construção de um califado virtuoso? Essa concentração geográfica não seria para eles uma fase necessária de um combate planetário contra as fontes terráqueas do Mal, a envolver como inimigos todos aqueles por elas seduzidos? Se a resposta for positiva nestes casos significativos, eles certamente não configuram um conflito de civilizações, nem uma guerra de religião ou religiões de sentido habitual.

Para os muçulmanos em geral, "moderados" ou simplesmente não-extremistas, independentemente da simpatia que muitos - assim como muitos nãomuçulmanos - possam ter com algumas ações, os agentes típicos do Terror atual não são civilizados, nem integrantes do islã.24 Essa mensagem, reiteradamente transmitida por líderes reconhecidos, sunitas e xiitas, em todas as ocasiões, não tem chegado como devia aos ouvidos das comunidades islâmicas em territórios do Ocidente. Menos ainda atingem a consciência popular do "Primeiro Mundo", amortecida por notícias superficiais e análises irresponsáveis, amedrontada pela demagogia perigosa de alguns políticos expressivos e crescentemente barricadas contra os imigrantes em geral, aí inclusos os concidadãos de fé ou origem muçulmana. Da mesma forma que não convencem o mundo muçulmano em geral as declarações dos líderes ocidentais, envolvidos nas operações militares no Afeganistão e Iraque, de que não estão em guerra com o islã.

Coexistência cultural
Deixando de lado a idéia, no mínimo questionável, de que o mundo pós-Guerra Fria está fadado a viver num conflito de civilizações, é possível encarar a inevitável coexistência cultural de hoje de maneira mais racional. A interculturalidade não constitui objetivo que se escolha; ela é um fato. Ocorre, em graus variados, com recepção diferente, basicamente em toda parte. Rejeitá-la não faz sentido, assim como não faz sentido rejeitar o processo de globalização per se. O máximo que se pode decidir é a melhor maneira de lidar com esses dois fenômenos.
Antes de ser o funcionário brasileiro designado para a função de coordenador nacional dos aspectos governamentais da iniciativa das Nações unidas denominada "Aliança de Civilizações", tenho participado, desde 2002, do trabalho do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial - Cerd25, "órgão de tratado" da Onu composto de 18 membros, estabelecido para supervisionar a execução da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1961. No Comitê, em Genebra, ao dedicar-me à tarefa de examinar os relatórios periódicos dos Estados-Partes da Convenção, juntamente com as comunicações e as queixas de indivíduos, grupos, organizações intergovernamentais e nãogovernamentais, tenho podido observar o quanto cada sociedade já se acha atualmente misturada. No século XXI, a heterogeneidade é feição comum a praticamente todos os países, de tal forma que o Cerd, integrado por peritos eleitos pelos Estados-Partes, levando em consideração "uma distribuição geográfica equitativa e a representação das diferentes formas de civilização e dos principais sistemas legais",26 regularmente se opõe a afirmações de qualquer governo de que sua população seja homogênea. Assim como rejeita a idéia de que não ocorram qualquer tipo de discriminação no Estado-Parte respectivo.
Enquanto os Estados vêm-se tornando continuamente menos homogêneos, e o mundo, crescentemente entrelaçado, o mesmo não ocorre com pequenas comunidades e grandes religiões. Ao contrário, seja como forma de auto-afirmação de grupos não detentores do poder, seja como autoproteção étnica contra o consumismo amoral, inerente à globalização em curso, as culturas vêm-se revigorando - ainda que de maneira distorcida - a ponto de parecerem sagradas. Uma vez que as religiões sempre foram aspectos importantes das culturas, o renascimento religioso pós-moderno tem sido um dos aspectos marcantes da fase contemporânea, ao passo que a religião em si vem-se reapresentando como fator essencial da política, inclusive em Estados constitucionalmente seculares.
Há, certamente, diferentes maneiras de lidar com a composição pluricultural das sociedades contemporâneas, que poucos Estados ou partidos ainda insistem em negar. É possível dividir as atitudes correntes com relação à pluralidade étnica e racial em duas grandes linhas: aqueles que professam o "multiculturalismo" para lidar com a assimetria de condições entre comunidades distintas e aqueles que preferem a "integração"-, vocábulo que não deve ser confundido com "assimilação". Comum em quase todos os Estados até o fim da Guerra Fria, a política de assimilação é hoje repudiada por lideranças acadêmicas e sociais como o esmagamento forçado da diversidade para absorção do diferente na cultura dominante.
Originalmente inventada no Canadá como sistema para evitar o separatismo dos franco-falantes do Québec, "multiculturalismo" é um padrão de tratamento das diferenças raciais, étnicas, culturais e origens nacionais, agora normalmente associado à tradição anglo-saxã, postulante da manutenção das diferenças sem misturas, na forma de mosaico de comunidades adjacentes. Do outro lado do espectro, ligado à tradição republicana francesa, encontram-se as políticas de integração - não exatamente "integracionismo", expressão encarada com desconfianças por trazer à mente políticas supostamente antiquadas dos "Estados nacionais homogêneos", usadas no passado para apagar, sem genocídio, os traços da identidade de minorias étnicas, ou, como se diz correntemente, contra o "direito à diferença".

Ambas as expressões, "multiculturalismo" e "integração cultural", são, como é usual na linguagem política, imprecisas, quando não voluntariamente enganadoras. Ambas podem ser positivas e negativas, conforme a semântica que se lhes atribua. O multiculturalismo, uma das principais tendências ideológicas de nossos tempos, será com certeza positivo, na medida em que se proponha a reconhecer e respeitar as diferenças existentes. Pode ser também contraproducente ou, mais diretamente, negativo, com ou sem boas intenções, se tratar as culturas como monólitos refratários ao sincretismo e à miscigenação, estimulando o chamado "racialismo" - maneira de enfocar as sociedades apenas pela ótica das raças - e, juntamente com ele, como efeitos colaterais do reconhecimento, a discriminação e a auto-segregação. Menos na moda do que o multiculturalismo, e colocada sob suspeita por movimentos em defesa dos direitos de minorias, a integração constitui um objetivo positivo, contanto que promova condições de igualdade reais e respeite o direito de cada um a seus elementos de autoidentificação original. Quando a igualdade é afirmada pela força, com desatenção para as distinções existentes ou esmagando as individualidades que não queiram continuar com traços de identificação ancestrais, transforma-se em assimilação, majoritária ou comunitária, que geralmente viola direitos humanos universais. Por outro lado, muitos países adotam políticas de ação afirmativa, inclusive preferências e cotas, para grupos específicos, sem a estes se referir como "minorias" e sem se autodeclarar "multiculturalistas". Outros Estados se autoqualificam como "multiculturalistas" querendo dizer simplesmente que reconhecem as várias contribuições culturais e populacionais que compõem a Nação, evidentemente misturada. Outros ainda continuam a declarar-se homogêneos em matéria de raça e religião, mas asseguram os direitos das pessoas e dos grupos diferentes presentes em seu território, sejam elas cidadãs ou estrangeiras.

Raramente se encontram hoje Estados que recusem aos etnicamente diferentes o direito de usar a língua materna, de professar a própria religião, de praticar os próprios cultos, contanto que nada disso viole a legislação local. Com isso não quero dizer que todos os líderes políticos e religiosos, agentes policiais, juízes, funcionários públicos em geral, executivos, comerciantes e as pessoas comuns respeitem os direitos dos "diferentes" todo o tempo. Quero dizer, sim, que são raríssimos os governos estabelecidos que não empregam o discurso dos direitos.

Discurso e legislações à parte, uma das tendências contemporâneas mais marcantes, conforme já mencionado, consiste na radicalização dos extremos, não somente na esfera religiosa. A intolerância fascistóide, o racismo e a xenofobia, agravados pela competitividade acirrada dentro do capitalismo globalizado, assim como a negação pós-moderna de valores universais, correspondem a fenômenos correlatos. Enquanto esta afirmação aqui se refere às sociedades, ela se aplica igualmente ao contexto internacional. Não acrescento o terrorismo a essa lista de correlações atuais porque me recuso, moralmente, a qualificá-lo como natural. Ainda que em termos lógicos qualquer um, eu inclusive, possa subscrever a interpretação de Baudrillard - e de Derrida, entre outros analistas - de que o terrorismo contemporâneo é o vírus gerado pelo sistema econômico-tecnológico existente, que vem globalizando sua desumanidade intrínseca juntamente com suas próprias formas de terror.

A aliança de civilizações

Em 2004, na esteira das explosões que mataram 192 pessoas em estação do metrô de Madri, um novo governo foi eleito na Espanha. Enquanto outros governos de muitos países, que se haviam unido à reação militar ao 11 de setembro e na posterior invasão do Iraque sob outros pretextos, continuavam sem pruridos nas duas alianças bélicas, o novo governo da Espanha imediatamente retirou o contingente espanhol do Iraque, mantendo somente uma participação quase simbólica na operação, corroborada pela ONU, no Afeganistão. Além disso, o novo presidente do governo, José L. R. Zapatero, na primeira sessão da Assembléia Geral de que participou, propôs às Nações Unidas uma "aliança de civilizações" de cunho pacífico, preventivo, assim como a designação pelo Secretário Geral de um Grupo de Alto Nível para "impulsionar essa iniciativa".27 O nome soava bonito, positivo, em contraste com o "conflito de civilizações", mas a forma e o conteúdo dessa "aliança" precisavam ser inventados.
Aceitando a sugestão do Chefe de Governo da Espanha, com o co-patrocínio do Primeiro Ministro da Turquia, Recep T. Erdogan, em julho de 2005, o Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, lançou a "Aliança de Civilizações, destinada a construir pontes sobre as divisões entre sociedades, exploradas pelos extremistas".28 

Também anunciou a decisão de convocar um grupo de personalidades eminentes para discutir a possível substância da iniciativa e apresentar relatório com recomendações e um plano de ação. O Grupo de Alto Nível, integrado por vinte intelectuais de todas as áreas geográficas,29 manteve reuniões e debates, vindo a apresentar seu relatório em novembro de 2006.30 

Desde então esse relatório tem sido a fonte de referência para todos os planos e projetos implementados no âmbito da Aliança de Civilizações.
O relatório é direto, sem circunlóquios. Assinala inter alia: "(A) a ansiedade e a confusão causadas pela teoria do 'conflito de civilizações' distorce de maneira lamentável os termos do discurso sobre as dificuldades que o mundo vem enfrentando".31

No item intitulado "A emergência do extremismo", o texto explicita: "A exploração da religião por ideólogos [...] tem levado à percepção equivocada de que a religião per se é a causa profunda de conflitos interculturais". A expressão "fundamentalismo" vem descrita como vocábulo "cunhado por cristãos protestantes [...] não adequadamente aplicável a outras comunidades". O relatório considera importante notar, a esse respeito, que movimentos assemelhados ao "fundamentalismo", nem sempre violentos, "existem na maioria das tradições [...]. O que há de comum a todos eles é um grande desapontamento e medo da modernidade secular, de que muitos tiveram a experiência como algo invasivo, amoral e desprovido de significação mais profunda". O extremismo, "não necessariamente religioso", tem o significado delineado como a advocacia de "medidas radicais para alcançar objetivos políticos".32

Composto de 102 Estados e organizações internacionais, em setembro de 2009, a aliança abrange grande variedade de parceiros privados - empresas, universidades, fundações e ONGs - e não tem implicações militares. Baseada no entendimento de que, para superar "percepções polarizadas, alimentadas por injustiças e desigualdades", agravadas por "guerras, ocupação e atos de terror" que têm exacerbado as suspeitas mútuas e o medo entre sociedades e dentro delas", é necessário "forjar a vontade política de abordar os desequilíbrios do mundo", a Aliança de Civilizações concentra suas ações em quatro prioridades: educação, juventude, migrações e meios de comunicação. Enquanto os Estados e as organizações intergovernamentais são os membros constitutivos da aliança, a maioria dos projetos, que se espera tenham efeito multiplicador, são planejados, financiados e implementados pela sociedade civil, inclusive, evidentemente, instituições de ensino e pesquisa.

Havendo experimentado o terror causado por agentes internos no país, os socialistas da Espanha haviam optado desde antes pela negociação com a ETA basca, como um meio melhor do que a repressão, para aplacar a fúria extremista. O diálogo pode não ter saciado os elementos radicais já terroristas, mas certamente não terá estimulado um ressentimento generalizado capaz de facilitar a mobilização de novos agentes. Atitude semelhante inspira a Aliança de Civilizações. Ninguém espera que a iniciativa em si seja capaz de erradicar as causas do terrorismo contemporâneo. Nem sequer a crença determinista de que as culturas tendem a chocarse. Ela pode, no máximo, ajudar a criar condições para um melhor entendimento mútuo. Ao procurar contrabalançar estereótipos, ela certamente não alimenta condições a excitarem aquilo que o escritor e pensador libanês Amin Malouf chama de "identidades assassinas".33

O multiculturalismo é uma denominação para políticas sociais em voga. A realidade é, porém, multicultural, não multiculturalista, muito menos integracionista no sentido positivo da expressão. Não obstante, gostando-se ou não dessa realidade, o mundo, já interligado, continuará a aproximar literalmente as culturas ainda mais, colocando-as crescentemente lado a lado ou mesclando-as. É necessário fazer todo o possível para enfrentar a situação presente, em que as respostas predominantes à alteridade têm sido a intolerância fascistóide, o racismo discriminatório, a xenofobia agressiva, o terrorismo e outros tipos de extremismo.
Se, apesar das recaídas correntes, as maiorias em quase todas as sociedades entenderem que a diversidade é algo bom, e muitos Estados vêm declarando que reconhecem o pluralismo cultural como riqueza, não como defeito, o mundo pode também, algum dia, dar seguimento a isso.
Talvez esta opinião não passe de uma expressão de otimismo ingênuo. Talvez não. Há pouco mais de um ano, um presidente mulato, ou negro, nos Estados Unidos era algo inconcebível. Há cerca de dois anos, ninguém leria da pena de um Almirante norte-americano que preside o Estado Maior conjunto:
Cada vez que deixamos de corresponder a nossos próprios valores... mostramo-nos mais e mais como os americanos arrogantes que nossos inimigos dizem sermos [...]. A comunidade muçulmana é um mundo sutil que não compreendemos plenamente, nem tentamos sempre compreender.34
Também surpreendentemente, já por mais de sete anos, o presidente da República do Brasil, eleito e reeleito em sufrágio popular, é um ex-operário metalúrgico, hoje admirado no mundo inteiro.
Há já vinte anos que a Guerra Fria terminou. Antes da queda do Muro de Berlim, ao longo de quatro décadas, ninguém ousava prever que isso pudesse acontecer durante seu tempo de sua vida.

Notas
1 A palavra usada antes da guerra era simplesmente "bósnio", gentílico sem conotação de etnia. "Bosníaco" é neologismo forjado durante o conflito dos anos de 1990 para diferenciar os bósnios muçulmanos dos demais eslavos habitantes da Bósnia-Herzegóvina , identificados como croatas e sérvios.

2 Os adversários imediatos dos bosníacos - croatas e sérvios da Bósnia-Herzegóvina - não tinham problema para abastecer-se nas respectivas repúblicas étnicas vizinhas.

3 Convém lembrar que até os albaneses, convertidos ao Islã, como os bosníacos, durante a dominação otomana, desde o fim da Segunda Guerra Mundial eram ateus, dentro da Albânia e da antiga Iugoslávia. Foi com Milosevic e com as guerras na região que os albaneses de Kossovo (e da Macedônia) voltaram a apegarse à identidade muçulmana.

4 Olivier Roy, La Sainte Ignorance - le temps de la religion sans culture, Paris, Ed. du Senil, 2008.

5 Entre elas a Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento ao Terrorismo, de 1999, e a Convenção Internacional para a Supressão de Atos de Terrorismo Nuclear, de 2005, adotadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas.

6 Declaração e Programa de Ação de Viena, Parte I, Parágrafo 17.

7 Os revolucionários russos, Lênin inclusive, rejeitavam o terrorismo, não por motivos éticos, mas porque a técnica difusa seria incapaz de fazer avançar a causa dos trabalhadores.

8 Embora a primeira tentativa de definir e criminalizar internacionalmente o terrorismo, esboçada pela Liga das Nações como "atos criminais dirigidos contra um Estado", no projeto de Tratado de Genebra de 1937, nunca tenha entrado em vigor por falta de ratificações suficientes, e desde então nenhuma definição jurídica tenha sido aprovada.

9 Peço desculpas aos muçulmanos por empregar o esdrúxulo neologismo "djihadista", pois, sem falar árabe, sei que o conceito de djihad (luta) em que se baseia é muito mais nobre em textos sagrados.

10 Jacques derrida & Jürgen Habermas, Le "Concept" Du 11 Septembre - Dialogues à New York (Octobre-Décembro 2001) avec Giovanna Borradori, Paris, Galilée, 2003. É claro que se poderiam agregar à lista, entre outros, o primeiro atentado contra o World Trade Center, em 1993, assim como a explosão em uma discoteca de Bali, e muitos outros golpes. Aqueles de Londres e Madri apenas se amoldam melhor à idéia de "seguimento" de Onze de Setembro.

11 Enquanto ninguém rotula com base em religião ou etnia os franco-atiradores que, nos Estados Unidos, "rotineiramente" fuzilam passantes, fregueses de supermercados e colegas de escola, quando, em novembro de 2009, um major psiquiatra norte-americano de nome árabe (Nidal Malik Hasan) matou treze companheiros em Fort Hoods, no Texas, todos assinalaram sua fé muçulmana, tendo algumas instituições logo qualificado seu crime como terrorismo.

12 Alissa Rubin, "Determined to die in a suicide blast", International Herald Tribune, 15-16/ago/09.

13 Ismail Khan & Pir Zhaubair Shah, "At least 22 dead in Pakistan Bombing", International Herald Tribune, 28/ago/09.

14 Embora o país tenha uma minoria xiita, a maioria de toda a população é sunita.

15 Primeira declaração pública de Bin Laden após o 11 de setembro, apud As'ad Abukhalil, Bin Laden, Islam and America's new "War on Terrorism", p. 84.

16 Observações publicadas pela revista The New Yorker, 24.set.2001, na coluna "Talk of the Town".

17 Jornais europeus, como The Times, contudo, faziamno. Citações de analistas e políticos europeus podem ser encontradas inter alia nas entrevistas via e-mail dadas por Noam Chomsky em set.-out. 2001, reproduzidas em seu livro 9-11 (New York Seven Stories Press, 2001 - minha tradução do trecho).

18 Noam Chomsky, op. cit., p.17.

19 Jean Baudrillard, L'espirit du terrorisme, Paris, Galillée, 2002, p.45-6 (publicado originalmente no Le Monde, em 3/nov./2001).

20 Pelas organizações não-governamentais mais conhecidas, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, mais do que pelos foros intergovernamentais competentes.

21 Giorgio Agambem, Estado de Exceção, trad. Iraci D. Poleti, S. Paulo, Boitempo, 2004.

22 O mesmo iria ocorrer meses depois, no início de 2010, por ocasião das eleições iraquianas.

23 É sintomático que ninguém qualifique de "cristão" ou "cristianista" outros terroristas, como Timothy McVeigh, que explodiu o prédio de Oklahoma City, ou o quase simpático "Unabomber" Theodore Kaczynski, norte-americano, que utilizava cartas-bombas em protesto contra o complexo tecnológico-industrial e a degradação ambiental.

24 Evidentemente, não incluo no "terrorismo contemporâneo", de objetivo impreciso, as operações, inclusive suicidas, inseridas em conflitos territoriais de longa data, como os da Palestina ou da Cashemira, inteligíveis e muitas vezes apoiadas do exterior.

25 Iniciais da sigla inglesa Committee on the Elimination of Racial Discrimination, pela qual é conhecido.

26 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, Artigo 8º, Parágrafo 1º.

27 Statement by the President of the Government of Spain, Jose Luis Rodrígues Zapatero, at the Fifty-Ninth Session of the United Nations General Assembly, New York, September 24, 2004 (unofficial translation - Misión Permanente de España en las Naciones Unidas).
28 Press Release , SG/SM/10004, 14 jul. 2005.

29 Entre os quais o brasileiro Candido Mendes, o espanhol Federico Mayor, o iraniano Seyyed Mohammad Khatami, o indonésio Ali Alatas e o sul-africano Desmond Tutu.

30 Publicado e distribuído pelas Nações Unidas em forma de livreto, o relatório, juntamente com informações sobre tudo o mais que diga respeito à Aliança de Civilizações, pode ser lido, em inglês, em <www.unaoc.org> e seus links.

31 Report of the High Level Group, parágrafo 1.3.
32 Ibid. , par. 3.8 e 3.10.

33 Amin Maalouf, Les Identities Meurtrières, Paris, Grasset, 1998.



34 Citação do Almirante Mike Mullen em artigo no Joint Force Quarterly, feita por Tom Shanker em "U.S. message to Muslims is flawed, admiral says", International Herald Tribune, 28 ago. 2009.