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quarta-feira, 6 de março de 2019

CITY OF JOY - ONDE VIVE A ESPERANÇA

Recém chegado ao catálogo da Netflix, City of Joy – Onde Vive a Esperança é um poderoso soco no estômago de quem dedica pouco mais de uma hora para assisti-lo. O documentário, dirigido pela diretora Madeleine Gavin e distribuído mundialmente pela plataforma de streaming, retrata a realidade de mulheres brutalizadas pela violência sexual na República Democrática do Congo que se recuperam de traumas físicos e emocionais em uma espécie de centro de reabilitação feminino chamado “Cidade da Alegria”.
O lugar, criado pelo médico ginecologista Denis Mukwege e conduzido em parceria com a ativista Christine Schuler-Deschryver, abriga mulheres vítimas de violência sexual (e política). Ali, elas recebem tratamento médico, psicológico, fazem aulas de autodefesa e exercícios de autoestima. O objetivo da Cidade da Alegria é cuidar, reestabelecer e dar motivação para que mulheres que passaram por situações devastadoras de extrema violência e desumanidade possam tornar-se líderes de suas comunidades e ensinar mais mulheres a se defenderem.
No Congo, o estupro é sistematicamente usado como estratégia de guerra. O país foi tomado pelos conflitos entre milícias, financiadas por diversos países do mundo interessados no minério congolês. Para controlar áreas próximas às zonas de extração, essas milícias atacam povoados, obrigando as pessoas a partirem.
Nesse cenário, baseado na mais pura selvageria do capitalismo, sustentado por nações que se colocam aos olhos do mundo como “civilizadas” e tomado por racismo, colonialismo, exploração e genocídio, as mulheres são as maiores vítimas. Por serem a base de suas famílias, destruir mulheres é como destruir a comunidade. Logo, ser mulher implica em ser também um alvo. Daí o terrorismo sexual.
Uma vez que o lugar de extração é controlado por uma milícia,  os minérios são retirados, processados e vendidos a preços esdrúxulos para o mundo todo – geralmente para a fabricação de computadores e celulares das principais marcas do mercado. Assim, a roda do capitalismo gira e o mundo faz vistas grossas à barbárie que acontece no Congo.
Sem nunca deixar de lado a crueza e potência dos depoimentos das vítimas, do médico e das ativistas, Madeleine Gavin conduz seu documentário de maneira surpreendentemente otimista. Ao optar por retratar a situação de abandono e insegurança em que as mulheres congolesas vivem, a diretora parte de um ponto de esperança. Um lugar onde, apesar de tanta tragédia, há possibilidade de pensar o futuro.
Claro que essa escolha não faz de City of Joy um filme feliz – e nem a Cidade da Alegria apaga da vida de suas hóspedes todo o terror que elas viveram. Seria impossível. Essas mulheres são compulsoriamente fortes. Elas não têm outra opção diante da jornada pela sobrevivência. No entanto, não deixa de ser bonito notar que, juntas, elas conseguem vislumbrar um novo ideal de comunidade.
O ponto alto do documentário, sem dúvidas, é  o fato de Gavin conseguir escapar de tratamentos comumente destinados às histórias cruéis, trocando clichês de sofrimento por registros de uma situação de tragédia que não explora a desgraça humana, sem deixar de ser didática, apresentar contexto, dados e dar ritmo à narrativa. Neste filme, triunfa a delicadeza de uma diretora que permitiu que a história se contasse através das pessoas envolvidas de forma genuína, com suas belezas e horrores.
Ao final, fica o gosto amargo do questionamento: quanta violência contra as mulheres do Congo existe em cada um de nossos aparelhos eletrônicos? Quanta desumanidade o capitalismo nos faz engolir sem que nem sequer saibamos? City of Joy pode ser visto, portanto, como uma espécie de denúncia manifesto esperançosa (na medida do possível)  contra a ignorância que nos é imposta. Além de ser, claro, uma obra audiovisual absolutamente valiosa.

Ficha técnica
Direção: Madeleine Gavin

Duração: 1h16

País: Congo, EUA

Ano: 2018

O MEDO DO VINCULO

O psicanalista Nicolau Maluf Jr fala da inversão, na sociedade, do eixo sexualidade-afeto. "Hoje, vínculo afetivo é fonte de ansiedade", diz

Não é novidade para ninguém que as relações afetivas têm se mostrado mais transitórias e pouco duradouras. Por um lado, o “casamento compulsório” – aquela obrigatoriedade de manter uma relação já esvaziada de amor e de desejo – deixou de ser uma imposição moral e legal:   divorciados não são mais vistos como estranhos no ninho, ou ” erradas”. Mas também é fato que, não só entre os mais jovens, a possibilidade ou a escolha de criar e manter um vínculo duradouro tem sido substituído pela transitoriedade.
Até o final dos anos 60, a questão era a repressão sexual. Hoje, é a “repressão afetiva”.  Existem várias maneiras de se examinar essa questão. Mas podemos destacar dois pontos: as influências culturais e como é formada a personalidade.
O primeiro ponto de vista olha a relação individuo-sociedade, ou seja, como as características de uma cultura refletem (e afetam) o modo de ser dos indivíduos.

As coisas tornaram-se descartáveis. As relações também.

Até uns 60 anos atrás as coisas eram feitas para durar. Literalmente. Se um aparelho quebrava, era levado para o conserto. Mas já havia começado entre produtores e fabricantes o colocar em prática da “obsolescência programada”. Não é um palavrão – é uma  estratégia, a de fabricar produtos com tempo certo (e curto) para durar ou “estar na moda”. Assim, o consumidor é como que obrigado a comprar outro. Isso acelera o consumo, e os lucros, claro. Isso se transfere  dos produtos para as relações: a “novidade” passa a ser referência de valor; o novo é priorizado. E as pessoas e relações também passaram a ser descartáveis.
De um ponto de vista psicológico, se antes a sexualidade era proibida e algo a ser evitada antes do casamento, da formalização da relação, depois da pílula anticoncepcional e da entrada da mulher no mercado de trabalho a sexualidade torna-se muito mais aceita e acessível para os jovens. Ao mesmo tempo, o afeto passa a estar cada vez mais ausente. O sexo ganha espaço. A ternura perde terreno.
A repressão sexual deixava marcas que resultavam em muita frustração e sofrimento nos adultos que enfim podiam vivenciá-la. Hoje, muitas vezes se dá o contrário: a sexualidade esvaziada de afeto, de forma neurótica e defensiva. As pessoas tornaram-se também descartáveis. Há sempre o “novo”, como possibilidade a ser vivenciado logo ‘a frente.
É bom lembrar novamente: não é que a permanência numa relação, seja por si só a marca de algo positivo. Claro que não.  Muitas vezes, encontramos parceiros e parceiras que se detestam, que mantém um casamento de fachada, que só permanecem juntos por razões neuróticas, religiosas ou econômicas. Ou por medo da solidão. A duração do relacionamento não é um valor em si mesmo. É num plano mais geral, num determinado contexto, que essas questões são examinadas,  as da sexualidade em conjunto com o afeto.

O segundo fator: a formação da personalidade

Todos nós passamos, quando somos crianças, por experiências afetivas que deixam marcas, registros, e determinam em grande parte nossa maneira de ver as coisas e viver a vida quando nos tornamos adultos. Algumas dessas experiências vão constituir o núcleo daquilo que é conhecido como “neurose”. A configuração desses registros é que surge como personalidade. Um jeito de ser no mundo.
Essa noção explica porque, muitas vezes, fazemos coisas que resultam em sofrimento para nós mesmos. Um exemplo: há mulheres que carregam a certeza de que “todos os homens  não prestam”; isso, porque passaram muitas vezes pela experiência da traição e da decepção amorosa. Mas pessoas mais próximas, mesmo sem serem especialistas, percebem que essas mulheres parecem escolher a dedo homens do tipo que evidentemente irão causar tal sofrimento. Essas mulheres gostam de sofrer? Não é tão simples. Na teoria, inconscientemente recriam no presente elementos do passado já vivido, e os repetem.
Estranho? Nem tanto. “Neurose” sempre tem a ver com o plano inconsciente. Tem a ver também com  vontades, desejos, impulsos que estavam na criança e que tornaram-se, inconscientemente, fonte de ansiedade posteriormente, em função da educação, das demandas sociais ou da mera repressão.
É importante realçar que há uma repetição, uma “atualização”, na neurose, de coisas da infância aparecendo agora na idade adulta, de forma inconsciente. Aqueles impulsos e desejos que permanecem ocultos da nossa consciência se mantêm vivos e atuantes. E, para o nosso psiquismo, um detalhe aparentemente desimportante de uma situação ou vivência no presente pode despertar impulsos, sem que seja possível nos darmos conta de que isso aconteceu. São fatores internos de cada um.
Não são apenas fatores externos  que marcam o o modo de agir das pessoas. Afirmei que “antes, a repressão era sexual”. Valores e costumes de um determinado tempo são introjetados, tornam-se parte da própria pessoa, através da conexão inconsciente com elementos da psicologia de cada um. O que quer dizer isso? Não é mais necessário haver um agente externo demandando alguma coisa. Quanto homens impotentes e quantas mulheres frígidas a repressão sexual causou?
Como a modificação dos costumes e do mercado de trabalho, comportamentos que antes eram vistos negativamente passam a ser aceitáveis, e até desejáveis.Mas há certas ansiedades mais profundas, da natureza humana que vida emocional, que simplesmente  mudam de lugar e permanecem. Essas ansiedades surgem agora como “medo de envolvimento”, mesmo que na aparência se apresentem como exercício de liberdade. O cerne, o centro desses conflitos sempre gira em torno da equação sexualidade-afeto. Antes, era a sexualidade que era reprimida, e o afeto, valorizado. Hoje, muitas vezes é a possibilidade do vínculo afetivo que é fonte de ansiedade. Mesmo inconscientemente.

Hoje em dia,  quantos homens e mulheres afetivamente impotentes?

Muitas vezes ouvimos que  o desenvolvimento da tecnologia, por si só, teria contribuído para um aumento das possibilidades de contato entre as pessoas; com isso, estaria favorecendo “traições” virtuais e coisas do gênero. É verdade que, com a globalização e o desenvolvimento da tecnologia, houve estímulo para um “atravessar fronteiras”, um abandono dos valores mais tradicionais.
Mas não é a tecnologia em si o problema. Se a pessoa passa a se conhecer melhor, ela lida melhor com isso no plano pessoal. “Conhece-te a ti mesmo” é uma frase atribuída a Sócrates ou a Pitágoras. Mas a frase completa na verdade é: “conhece-te a ti mesmo e assim conhecerás os deuses e o universo” . Uma interpretação possível naquilo que nos interessa no momento é a de que alguém, ao se conhecer mais profundamente, também terá ensejo de saber reconhecer, conhecer, mais vigorosamente, o  outro.



QUE AMOR É ESSE?


É possível que você esteja vivendo uma relação abusiva ou já tenha escutado que alguém próximo está enredado em um relacionamento tóxico. Muito se tem falado  a respeito desse assunto nas mídias.
Parece ter se tornado mais comum notar essa forma de vínculo entre os casais. Mas é importante ressaltar que um relacionamento abusivo pode ocorrer em qualquer tipo de relação humana – não necessariamente entre namorados ou cônjuges, mas também entre pais e filhos, irmãos, amigos, colegas de trabalho, entre outros.
Chamamos de relação tóxica “a forma assimétrica de se relacionar entre duas pessoas”, onde uma delas sofre intensamente com o modo de ser da outra, que em nada se modifica a esse respeito. Uma das pessoas sente-se aprisionada e emocionalmente dependente; torna-se refém de um vínculo empobrecido, pouco criativo, pautado no sofrimento, no desrespeito e na falta de confiança e empatia. É uma trama de difícil digestão mental, com esgotamento de energia emocional que potencializa a fragilidade de uma das partes, devido ao alto grau de conteúdo inconsciente existente na dupla. Nesse cenário, a relação não progride e a possibilidade de gratificação com trocas mais ricas fica abalada.
Um dos envolvidos ativa no outro pontos específicos. Em psicanálise, podemos pensar se tratar de uma dinâmica destrutiva em que a doença de um necessita ou completa a doença do outro: de um lado, há alguém incapaz de sentir os sentimentos e as emoções, isto é, incapacitado de sentir compaixão, remorso ou culpa. Do outro lado, está alguém empático, preocupado, doador e que carrega em si culpa inconsciente, senso de obrigação e responsabilidade para com os outros e com a vida. Mas seu lado frágil, inconsciente, à espera de reasseguramento está mais agudo. Há uma espécie de relação adicta entre o par tal qual há na de usuários de substância psicoativa.
Trata-se de uma trama complexa encenada por uma dupla onde quem se sente ameaçado não consegue enxergar suas qualidades e potenciais e fica à espera de que o outro o perceba, o que não ocorre. As cobranças emocionais são acionadas e viram um círculo vicioso altamente destrutivo e do qual é difícil escapar. Exemplificando: é possível pensar numa relação sadomasoquista onde os papéis podem se alternar; o masoquista, que tem prazer em sofrer, busca o estado de humilhação e o sádico, com prazer em torturar e fazer sofrer, se apresenta.
Não é simples conseguir sair de uma relação tóxica, principalmente se existe vínculo econômico que acaba se misturando à dependência emocional. Nesse caso, observa-se que as dificuldades mais comuns são:

1- Econômicas: quando o parceiro (a) não é autônomo e independente;

2- Emocionais e afetivas: relacionadas à dependência emocional – o medo de se sentir desamparado, medo das reações do parceiro, temor de ficar sozinho e crença de que não conseguirá refazer sua vida amorosa. E, como existe um ciclo de calmaria na relação, a pessoa tende a acreditar que o parceiro (a) irá se modificar, ou que ela (e) será capaz de fazê-lo (a) mudar. Há um receio de se deparar com o desconhecido que pode significar o seu autodesconhecimento, isto é, o próprio não saber sobre si mesmo;

3- Sociais: a relação abusiva tem por característica o isolamento do casal do seu meio social, afastamento de amigos e familiares.

4- Questões jurídicas: existe um nó emocional  inconsciente na relação abusiva que cega a vítima. A pessoa então não busca ajuda ou desconhece as questões legais.
As pessoas envolvidas nesse tipo de relacionamento devem buscar apoio de seu círculo social e familiar, bem como ajuda psicológica, pois apresentam tendência a experimentar em suas vidas uma dose excessiva de sofrimento que as impossibilita de trocas afetivas mais ricas e verdadeiras e isso está longe de ser o que se procura, que é o amor.