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quarta-feira, 6 de março de 2019

O MEDO DO VINCULO

O psicanalista Nicolau Maluf Jr fala da inversão, na sociedade, do eixo sexualidade-afeto. "Hoje, vínculo afetivo é fonte de ansiedade", diz

Não é novidade para ninguém que as relações afetivas têm se mostrado mais transitórias e pouco duradouras. Por um lado, o “casamento compulsório” – aquela obrigatoriedade de manter uma relação já esvaziada de amor e de desejo – deixou de ser uma imposição moral e legal:   divorciados não são mais vistos como estranhos no ninho, ou ” erradas”. Mas também é fato que, não só entre os mais jovens, a possibilidade ou a escolha de criar e manter um vínculo duradouro tem sido substituído pela transitoriedade.
Até o final dos anos 60, a questão era a repressão sexual. Hoje, é a “repressão afetiva”.  Existem várias maneiras de se examinar essa questão. Mas podemos destacar dois pontos: as influências culturais e como é formada a personalidade.
O primeiro ponto de vista olha a relação individuo-sociedade, ou seja, como as características de uma cultura refletem (e afetam) o modo de ser dos indivíduos.

As coisas tornaram-se descartáveis. As relações também.

Até uns 60 anos atrás as coisas eram feitas para durar. Literalmente. Se um aparelho quebrava, era levado para o conserto. Mas já havia começado entre produtores e fabricantes o colocar em prática da “obsolescência programada”. Não é um palavrão – é uma  estratégia, a de fabricar produtos com tempo certo (e curto) para durar ou “estar na moda”. Assim, o consumidor é como que obrigado a comprar outro. Isso acelera o consumo, e os lucros, claro. Isso se transfere  dos produtos para as relações: a “novidade” passa a ser referência de valor; o novo é priorizado. E as pessoas e relações também passaram a ser descartáveis.
De um ponto de vista psicológico, se antes a sexualidade era proibida e algo a ser evitada antes do casamento, da formalização da relação, depois da pílula anticoncepcional e da entrada da mulher no mercado de trabalho a sexualidade torna-se muito mais aceita e acessível para os jovens. Ao mesmo tempo, o afeto passa a estar cada vez mais ausente. O sexo ganha espaço. A ternura perde terreno.
A repressão sexual deixava marcas que resultavam em muita frustração e sofrimento nos adultos que enfim podiam vivenciá-la. Hoje, muitas vezes se dá o contrário: a sexualidade esvaziada de afeto, de forma neurótica e defensiva. As pessoas tornaram-se também descartáveis. Há sempre o “novo”, como possibilidade a ser vivenciado logo ‘a frente.
É bom lembrar novamente: não é que a permanência numa relação, seja por si só a marca de algo positivo. Claro que não.  Muitas vezes, encontramos parceiros e parceiras que se detestam, que mantém um casamento de fachada, que só permanecem juntos por razões neuróticas, religiosas ou econômicas. Ou por medo da solidão. A duração do relacionamento não é um valor em si mesmo. É num plano mais geral, num determinado contexto, que essas questões são examinadas,  as da sexualidade em conjunto com o afeto.

O segundo fator: a formação da personalidade

Todos nós passamos, quando somos crianças, por experiências afetivas que deixam marcas, registros, e determinam em grande parte nossa maneira de ver as coisas e viver a vida quando nos tornamos adultos. Algumas dessas experiências vão constituir o núcleo daquilo que é conhecido como “neurose”. A configuração desses registros é que surge como personalidade. Um jeito de ser no mundo.
Essa noção explica porque, muitas vezes, fazemos coisas que resultam em sofrimento para nós mesmos. Um exemplo: há mulheres que carregam a certeza de que “todos os homens  não prestam”; isso, porque passaram muitas vezes pela experiência da traição e da decepção amorosa. Mas pessoas mais próximas, mesmo sem serem especialistas, percebem que essas mulheres parecem escolher a dedo homens do tipo que evidentemente irão causar tal sofrimento. Essas mulheres gostam de sofrer? Não é tão simples. Na teoria, inconscientemente recriam no presente elementos do passado já vivido, e os repetem.
Estranho? Nem tanto. “Neurose” sempre tem a ver com o plano inconsciente. Tem a ver também com  vontades, desejos, impulsos que estavam na criança e que tornaram-se, inconscientemente, fonte de ansiedade posteriormente, em função da educação, das demandas sociais ou da mera repressão.
É importante realçar que há uma repetição, uma “atualização”, na neurose, de coisas da infância aparecendo agora na idade adulta, de forma inconsciente. Aqueles impulsos e desejos que permanecem ocultos da nossa consciência se mantêm vivos e atuantes. E, para o nosso psiquismo, um detalhe aparentemente desimportante de uma situação ou vivência no presente pode despertar impulsos, sem que seja possível nos darmos conta de que isso aconteceu. São fatores internos de cada um.
Não são apenas fatores externos  que marcam o o modo de agir das pessoas. Afirmei que “antes, a repressão era sexual”. Valores e costumes de um determinado tempo são introjetados, tornam-se parte da própria pessoa, através da conexão inconsciente com elementos da psicologia de cada um. O que quer dizer isso? Não é mais necessário haver um agente externo demandando alguma coisa. Quanto homens impotentes e quantas mulheres frígidas a repressão sexual causou?
Como a modificação dos costumes e do mercado de trabalho, comportamentos que antes eram vistos negativamente passam a ser aceitáveis, e até desejáveis.Mas há certas ansiedades mais profundas, da natureza humana que vida emocional, que simplesmente  mudam de lugar e permanecem. Essas ansiedades surgem agora como “medo de envolvimento”, mesmo que na aparência se apresentem como exercício de liberdade. O cerne, o centro desses conflitos sempre gira em torno da equação sexualidade-afeto. Antes, era a sexualidade que era reprimida, e o afeto, valorizado. Hoje, muitas vezes é a possibilidade do vínculo afetivo que é fonte de ansiedade. Mesmo inconscientemente.

Hoje em dia,  quantos homens e mulheres afetivamente impotentes?

Muitas vezes ouvimos que  o desenvolvimento da tecnologia, por si só, teria contribuído para um aumento das possibilidades de contato entre as pessoas; com isso, estaria favorecendo “traições” virtuais e coisas do gênero. É verdade que, com a globalização e o desenvolvimento da tecnologia, houve estímulo para um “atravessar fronteiras”, um abandono dos valores mais tradicionais.
Mas não é a tecnologia em si o problema. Se a pessoa passa a se conhecer melhor, ela lida melhor com isso no plano pessoal. “Conhece-te a ti mesmo” é uma frase atribuída a Sócrates ou a Pitágoras. Mas a frase completa na verdade é: “conhece-te a ti mesmo e assim conhecerás os deuses e o universo” . Uma interpretação possível naquilo que nos interessa no momento é a de que alguém, ao se conhecer mais profundamente, também terá ensejo de saber reconhecer, conhecer, mais vigorosamente, o  outro.



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